Sessão de Gala

Reis

Foi por acaso que passei pela Lapinha 10 anos depois justamente na noite de reis. Tinha acabado de sair de uma reunião ali perto. Então as luzes e a multidão que vinham do largo me lembraram que aquela era a Festa de Reis da Lapinha. Mais uma dessas festas de rua de Salvador de origem religiosa e destino pagodeiro. Resolvi observar de perto. Eram as mesmas luzes. Os adereços. O colorido sujo. As famílias pobres desta boa terra de merda, felizes com tantas luzes e apenas um saco de pipoca doce na mão. A festa estava ali. Parecia a mesma. Mas existiam as diferenças.

Meu estranhamento começou com o próprio largo. Arrancaram o bom e velho palanque de pedra do centro e puseram em seu lugar uma porra de uma pracinha igual a tantas outras que se vê por aí. Percebi também o número reduzido de barracas. Naquele tempo era uma barraca de cachaça emendada na outra. Com suas mesas e banquinhos de madeira coloridos. Serviam basicamente petiscos baratos em pratos de plástico e cerveja em copos lavados com água de bunda. Agora era uma barraquinha aqui, outra ali. Provavelmente tudo limpinho. Senti falta também do aglomerado de barracas de capeta. Meu primeiro porre de capeta foi numa festa de reis. Foi o capeta que me fez ser atropelado por um desses carrinhos de café coloridos. O carrinho tinha até uma buzina de kombi de verdade.

Perambulando pela porra da pracinha sem graça avistei uma mulata conhecida. Não lembrava o nome. Mas sabia que era a filha do meio de Seu Clemente, o verdureiro. Carregava um garoto nos braços que tentava puxar-lhe a blusa para dar uma mamada. Vai fundo, garoto. Provei desses peitos em outros tempos, atrás do murinho do sanatório. Tirando a mulata, não reconhecia mais ninguém. Foi quando uma mão bateu em minhas costas. Era Capenga. Sentamos numa barraca. Pedimos pititinga e caipirinhas.

- E essa careca, Paulinho?
- Não esquento mais. Me conta aí quais as novas.
- Tô com uma filhinha aí.
- De fuder.
- Daiana. A mãe que botou o nome.
- Tá com aquela mesma menina?
- A mesma, Daniela. Sempre fui preguiçoso pra procurar mulher.
- Mas ela é uma boa garota, Capenga.
- É verdade. Sabe quem é pai também?
- Quem?
- Rubalo. Tá com um menino. Bonitinho o sacaninha.
- É, tô sabendo.
- Davi também.
- Davi também é pai?
- É.
- Porra. Talvez então eu tenha chance também.
- Você sabe que Lorinho já tem dois, né?
- Tinha só aquela guria com a cara do Taffarel. Teve outro?
- Teve um menino agora. Vaca também tá com um neguinho aí.
- A camisinha não chegou aqui na Lapinha não, caralho?
- Os caras tão dizendo que só falta João ter o dele. Mas dizem que o ovo dele é goro.

Capenga e eu conversamos sobre outras amenidades. Até ouvirmos o rebuliço da multidão. Alguma coisa acontecia na frente da igreja. Pagamos a conta e fomos ver. Era o Padre Pinto. Trajava roupas estranhas e dançava o que parecia um ritual de candomblé. Mais aviadado do que nunca. Tinha o rosto maquiado. Algumas pessoas o aplaudiam. Outras, principalmente as beatas, faziam o sinal da cruz. Talvez minha vó também reprovasse aquele ritual. Mas não me incomodava. Sempre respeitei aquele padre. Certa vez ele encarou uma velha que nos xingava por jogarmos bola perto de sua janela. "Nenhum desses meninos da Lapinha são moleques. Batizei todos eles, e são todos meninos de família!" – dizia Padre Pinto. Agora ele estava ali. Rodando e rodando e rodando. Balançando os braços pra lá e pra cá. “Padre Pinto tá possuído!” – alguém gritou. Talvez a igreja da Lapinha não fosse mais a mesma. Não sei. Não entendo de igrejas. Mas diante daquela porra de pracinha sem graça, tanto faz. Deixei o Padre Pinto em paz com sua dança. Por sinal, foi logo depois que começou a tocar o pagode pela praça, que me despedi de Capenga e também daquela festa que eu não reconhecia totalmente. Antes, parei para dar uma mijada. Então descobri que, atrás da igreja, o fedor horrendo de mijo nos dias da Festa de Reis continua o mesmo.

Paulo Bono

*Publicitário, baiano, blogueiro e escreve para caralho. Confiram:
http://www.espalitandodente.blogspot.com/

15 comentários:

Padre Alfredo disse...

Adorei o passeio pela festa de largo.
Em terra de caralhaquatro, quem tem palito... errei!
Valeu Paulão!

Jana disse...

ih, Paulo, na parte que vc falou que tá todo mundo parindo, meu deu uma depressão...

Mas passou qdo pensei que é Capeta que eu vou estar tomando qdo tiver que falar qualquer coisa introdutória pra vc e a apresentação do seu livro.

Beijo.

"Belezas e Encrencas" por um Assessor de Imprensa disse...

Esse time tá cada dia melhor!
Paulinho, seus textos são ducaralho!

abraço, man.

4rthur disse...

Paulo é foda.

joanarizerio@gmail.com disse...

de fuder!!!!!!!

gigi disse...

paulo bono é gênio.

pititinga é o q?

MM disse...

Muita honra ter Paulo Bono desfilando por aqui! Valeu Rei!

AB disse...

Precisa elogiar, Paulo?? Um texto com gosto de passado bom... E, que vontade de ser "feliz com tantas luzes e apenas um saco de pipoca doce na mão.."

Samantha Abreu disse...

ahahahaha
parece eu, quando encontro umas amigas de tempos atrás!

Adorei! fantástico!

um beijo!

Danilo Lemos disse...

O padre pinto assistiu o pagador de promessas, se sentiu culpado e foi louvar santa bárbara no terreiro.
É assim mesmo.

Anônimo disse...

olha! nao sabia que tu e baiano, Paulo. Eu adoraria ter visto o padre Pinto na danca dele - acho umas das coisas que a tua terra tem de mais bonito, esse sincretismo, essa cultura exuberante! Ainda passarei por la.

E o muro com cheiro de mijo e uma coisa tao brasileira quanto as festinhas de igreja ne? tem em todo canto!

Valeu, Paulo, otimo texto!

Paulo Bono disse...

se um dia, assim feito Capenga, eu tiver um filho, eu direi orgulhosamente para ele:

- acredite, um dia seu pai publicou um conto num blog boca de zero nove!!

valeu, Mendonça e seu vigário pela oportunidade.

e um abraço pra todo mundo.

Roberto Camara Jr. disse...

Paulo meu caro!
Que conto DA PORRA!!!
ou melhor dizendo, DU CARALHAQUATRO!!!

Isso sim é que é ser baiano!!!

Eitcha nóiz!!!

Padre Alfredo disse...

me dê licença padre Pinto, mas esse seu filho eu quererei batizar seu Paulo bonoconto.
Venha sempre espalitar esse caralho

Menáge à Trois disse...

Quando os tempos mudam parece que não é o espaço que é estranho, mas a gente mesmo.
Adorei o conto, além de poder observar pelas suas palavras como é a festa aí na Bahia. Muiiiiiiiiiito bom!!

Como ninguém